sábado, 30 de abril de 2011

3. A HISTÓRIA


A Doutrina Espírita, como toda idéia nova, tem seus adeptos e
seus opositores. Vamos tentar responder a algumas das objeções,
examinando o valor dos motivos em que se apóiam, sem termos, en-
tretanto, a pretensão de convencer a todos, porque há pessoas que
acreditam que a luz tenha sido feita exclusivamente para elas. Dirigi-
mo-nos às pessoas de boa-fé, sem idéias preconcebidas ou obstina-
das e sinceramente desejosas de se instruir, e demonstraremos que a
maior parte das objeções à Doutrina provém de uma observação in-
completa dos fatos e de um julgamento feito com muita leviandade e
precipitação.
Lembremos primeiramente e em poucas palavras a série progres-
siva dos fenômenos que deram origem à Doutrina Espírita.
O primeiro fato observado foi o de que diversos objetos se movi-
mentavam; de maneira geral, chamaram-no de mesas girantes ou dança
das mesas. Esse fenômeno, observado primeiramente nos Estados
Unidos, ou melhor, que se repetiu e foi anunciado naquele país, por-
que a história prova que remonta à mais alta Antiguidade, se produziu
acompanhado de circunstâncias estranhas, como barulhos anormais,
pancadas sem causa aparente ou conhecida. Dos Estados Unidos se
propagou rapidamente pela Europa e em seguida por todo o mundo.
A princípio houve muita incredulidade, mas a multiplicidade das expe-
riências não mais permitiu duvidar da realidade.
Se o fenômeno tivesse ficado restrito ao movimento dos objetos
materiais, poderia ser explicado por uma causa puramente física. Esta-
mos longe de conhecer todos os agentes ocultos da natureza e todas as
propriedades daqueles que conhecemos; a eletricidade, aliás, multi-
plica a cada dia ao infinito os recursos que ela proporciona ao homem
e parece destinada (6) a iluminar a ciência com uma nova luz. Não haveria,
portanto, nada de impossível se a eletricidade, modificada por algum
fator ou qualquer outro agente desconhecido, fosse a causa desse
movimento. A reunião de muitas pessoas, aumentando o poder da
ação, parecia apoiar essa teoria, porque se podia considerar todo o
conjunto como uma pilha múltipla cujo potencial estava em razão do
número de elementos.
O movimento circular não apresentaria nada de extraordinário,
está na natureza, todos os astros se movem em círculos; poderíamos
ter um pequeno reflexo do movimento geral do universo, ou melhor,
uma causa até então desconhecida poderia produzir acidentalmente,
com pequenos objetos e em determinadas circunstâncias, uma cor-
rente parecida à que faz girar os mundos.
Ocorre que o movimento nem sempre era circular; muitas vezes
era brusco, desordenado; outras vezes o objeto era violentamente
sacudido, derrubado, levado numa direção qualquer e, contrariamente a
todas as leis da estática(7), levantado do chão e mantido no espaço.
Ainda não havia nada nesses fatos que não pudesse ser explicado
pelo poder de um agente físico invisível. Não vemos a eletricidade
derrubar edifícios, destruir árvores, lançar ao longe os mais pesados
corpos, atraí-los ou repeli-los?
Os ruídos anormais, as pancadas, supondo-se que não fossem um
dos efeitos normais da dilatação da madeira ou de qualquer outra causa
acidental, poderiam muito bem ser produzidos pelo acúmulo de um fluido
oculto: a eletricidade não produz os ruídos mais violentos (8)?
Até aí, como se vê, tudo podia ocorrer no domínio dos fatos pura-
mente físicos e fisiológicos. Sem sair desse círculo de idéias, havia
matéria para estudos sérios e dignos de fixar a atenção dos sábios.
Por que isso não aconteceu? É lamentável dizer, mas isso se prende
a causas que provam, entre mil fatos semelhantes, a leviandade do
espírito humano. Por se tratar de um objeto comum, no caso a mesa
que serviu de base às primeiras experiências, provocou a estranheza
e a indiferença dos sábios. Que influência, muitas vezes, não tem uma
palavra sobre as coisas mais sérias? Sem considerar que o movimen-
to poderia ser dado a um outro objeto qualquer, a idéia das mesas
prevaleceu, sem dúvida, porque esse era o objeto mais cômodo e ao
redor de uma mesa as pessoas se sentam com mais naturalidade do
que ao redor de qualquer outro móvel. Portanto, os homens de inteli-
gência superior são, algumas vezes, tão pretensiosos que não seria
nada impossível considerar que inteligências de elite tenham acredi-
tado que se rebaixariam caso se ocupassem daquilo que foi conven-
cionado chamar a dança das mesas. É mesmo provável que se o fenô-
meno observado por Galvani (9) o tivesse sido por homens comuns e
ficasse conhecido por um nome simples, ainda estaria rebaixado ao mes-
mo plano da varinha mágica. Qual é, de fato, o sábio que não teria
julgado uma indignidade se ocupar da dança das rãs (10)?
Entretanto, alguns sábios, bastante modestos por admitir que a
natureza poderia muito bem não lhes ter dito sua última palavra, qui-
seram ver, para tranqüilizar as suas consciências. Mas aconteceu que
o fenômeno nem sempre correspondeu à expectativa que tinham, e
como o fato não se produziu conforme a sua vontade e segundo seu
modo de experimentação, concluíram pela negativa. Apesar do que
decretaram, as mesas continuaram a girar, e podemos dizer como
Galileu: “Todavia elas se movem! ” Diremos mais: “É que os fatos se
multiplicaram de tal modo que hoje têm direito à cidadania e que não se
trata senão de achar-lhes uma explicação racional”.
Pode-se deduzir algo contra a realidade de um fenômeno pelo fato
de ele não se produzir de um modo sempre idêntico, atendendo à vonta-
de e às exigências do observador? Acaso não estão os fenômenos da
eletricidade e da química também subordinados a certas condições?
Deve-se negá-los porque não se produzem fora dessas condições? Por-
tanto, não há nada de surpreendente em que o fenômeno do movimento
dos objetos pelo fluido humano também tenha suas condições para se
realizar e deixe de se produzir quando o observador, colocando-se em
seu próprio ponto de vista, pretende fazer com que ele se realize confor-
me o seu capricho ou submetê-lo às leis dos fenômenos conhecidos,
sem considerar que para os fatos novos pode e deve haver novas leis?
Portanto, para conhecer essas leis é preciso estudar as circunstâncias
em que os fatos se produzem, e esse estudo só pode ser fruto de uma
observação perseverante, atenta e às vezes muito longa.
Mas algumas pessoas alegam que muitas vezes há fraudes evi-
dentes. Em primeiro lugar, devemos perguntar se estão bem certas disso e
se não tomaram por fraudes os efeitos que não conseguiram entender,
como o camponês que confundiu um sábio professor de física realizando
experiências como um mágico habilidoso. Mas, mesmo supondo que a
fraude pudesse acontecer algumas vezes, seria razão para negar o
fato? Deve-se negar a física porque há ilusionistas e mágicos que dão
a si mesmo o título de físicos? Aliás, é preciso levar em conta o caráter
das pessoas e o interesse que podiam ter em enganar. Então seria
um gracejo? Admite-se que uma pessoa possa se divertir por um ins-
tante, mas uma brincadeira indefinidamente prolongada seria tão can-
sativa para o mistificador (11) quanto para o mistificado. De resto, numa
mistificação que se propaga de um lado a outro do mundo e entre
pessoas mais sérias, mais veneráveis e mais esclarecidas, haveria
algo tão extraordinário quanto o próprio fenômeno.

6 - Kardec escreveu “parece destinada” porque referia-se aos primeiros inventos relacionados à eletri-
cidade, como a lâmpada, que estava, na época, em pesquisas e ainda era desconhecida (N. E.).
7 - Estática: ciência que estuda o equilíbrio dos corpos sob a ação das forças (N. E.).
8 - Os trechos “não vemos a eletricidade derrubar edifícios...” e “a eletricidade não produz os ruídos mais
violentos” referem-se às descargas elétricas provocadas pelos relâmpagos, trovões e raios (N. E.).
9 - Luigi Galvani: médico e físico italiano (N. E.).
10 - Dança das rãs: Galvani notou que as rãs dissecadas, expostas em pedaços sobre uma
superfície de ferro, davam pulos. Dessa observação a ciência caminhou para o conhecimento
do fluido nervoso e mais tarde da pilha elétrica (N. E.).
11 - Mistificador: enganador; que abusa da credulidade; burlador (N. E.).


sexta-feira, 29 de abril de 2011

2. A ALMA(1)


Há outra palavra sobre a qual devemos igualmente nos entender, por constituir em si um dos fechos de abóbada (2), isto é, a sustentação de toda a doutrina moral, e que se tornou objeto de muitas ontrovérsias por falta de um significado que a defina com precisão determinada. É a palavra alma . A divergência de opiniões sobre a natureza da alma resulta da aplicação particular que cada um faz dessa palavra.
Uma língua perfeita, em que cada idéia tivesse sua representação por um termo próprio, evitaria muitas discussões; com uma palavra para cada coisa, todos se entenderiam.
Segundo alguns, a alma é o princípio da vida material orgânica, não tem existência própria e termina com a vida: é o materialismo puro. É nesse sentido e por comparação que se diz de um instrumento rachado quando não emite mais som: não tem alma. De acordo com essa opinião, a alma seria um efeito e não uma causa. Outros pensam que a alma é o princípio da inteligência, agente universal do qual cada ser absorve uma porção. De acordo com esse pensamento, haveria para todo o universo apenas uma única alma que distribui suas centelhas entre os diversos seres inteligentes durante a vida. Após a sua morte, cada centelha retornaria à fonte comum, onde se misturaria no todo, como as águas dos riachos e dos rios retornam ao mar de onde saíram. Essa opinião difere da anterior apenas em que, nessa hipótese, há no corpo mais do que a matéria e que resta alguma coisa depois da morte; mas é quase como se não restasse nada, uma vez que, incorporando-se ao todo de onde veio, perde a individualidade e, assim, não teríamos mais consciência de nós mesmos. De acordo com essa opinião, a alma universal seria Deus e cada ser, uma porção da divindade. Essa é uma variante do panteísmo(3).
E por fim, segundo outros, a alma é um ser moral, distinto e independente da matéria, que conserva sua individualidade após a morte.
Essa concepção é, indiscutivelmente, a mais generalizada, visto que, sob um nome ou outro, a idéia desse ser que sobrevive ao corpo se encontra como crença instintiva e independentemente de qualquer ensinamento, entre todos os povos, seja qual for o grau de sua civilização. Essa doutrina, segundo a qual a alma é a causa e não o efeito, é a dos espiritualistas.
Sem discutir o mérito dessas opiniões, considerando apenas o lado lingüístico da questão, diremos que as três aplicações da palavra alma constituem três idéias distintas e que, para serem claramente expressas, cada uma precisaria de um termo diferente. A palavra tem, portanto, uma tríplice significação e cada uma tem razão em seu ponto de vista, na definição que lhe dá. O problema é a língua ter apenas uma palavra para designar três idéias. Para evitar qualquer equívoco, seria preciso aplicar o significado da palavra alma a uma dessas três idéias. Escolher qualquer uma é indiferente, é uma questão de ajuste de opiniões; o importante é que nos entendamos. Acreditamos mais lógico tomá-la na sua concepção mais comum; é por isso que denominamos ALMA o ser imaterial e individual que existe em nós e que sobrevive ao corpo. Ainda que esse ser não existisse e fosse apenas um produto da imaginação, seria preciso assim mesmo um termo para designá-lo.
Na falta de uma palavra especial para cada uma das outras duas idéias, denominamos princípio vital o princípio da vida material e orgânica, qualquer que lhe seja a origem, e que é comum a todos os seres vivos, desde as plantas até o homem. Podendo existir vida sem depender da capacidade de pensar, o princípio vital é assim uma propriedade distinta e autônoma (4). A palavra vitalidade não daria a mesma idéia. Para alguns, o princípio vital é uma propriedade da matéria, um efeito que se produz quando a matéria se encontra em determinadas circunstâncias. Segundo outros, e esta é a idéia mais comum, ele
se encontra num fluido especial, universalmente espalhado e do qual cada ser absorve e assimila uma parte durante a vida, como vemos os corpos inertes absorverem a luz. Este seria, então, o fluido vital, que, segundo algumas opiniões, seria o fluido elétrico animalizado, designado também sob os nomes de fluido magnético, fluido nervoso, etc.
O que quer que ele seja, há um fato que não se poderá contestar, porque é resultante da observação: é que os seres orgânicos têm em si uma força íntima que produz o fenômeno da vida, enquanto essa força dure; que a vida material é comum a todos os seres orgânicos e é independente da inteligência e do pensamento; que a inteligência e o pensamento são capacidades próprias de algumas espécies orgânicas; e que, enfim, entre as espécies orgânicas dotadas de inteligência e de pensamento, há uma que é dotada de um senso moral especial que lhe dá uma incontestável superioridade sobre as outras: é a espécie humana.
Concebe-se assim que nem o materialismo nem o panteísmo excluem em suas teorias a noção de alma por causa do significado abrangente que se lhe pode atribuir. Mesmo o espiritualista pode entender muito bem a alma segundo uma das duas primeiras definições, sem reduzir o ser imaterial distinto ao qual dará um nome qualquer. Assim, a palavra alma não representa uma idéia única; é um Proteu (5) que cada um acomoda a seu gosto, daí a fonte de tantas disputas intermináveis.
Ao se utilizar da palavra alma em qualquer dos três casos, teríamos uma idéia clara ao lhe acrescentar um qualificativo que especificasse o ponto de vista a que se refere, ou a aplicação que se faz dela.
Seria, então, uma palavra genérica, representando ao mesmo tempo o princípio da vida material, da inteligência e do sentido moral, mas que se diferenciaria por um atributo, como o gás, por exemplo, que se distingue quando lhe acrescentamos as palavras hidrogênio, oxigênio ou azoto. Assim é que deveríamos compreender a alma vital para designar o princípio da vida material; a alma intelectual para o princípio da inteligência que se expressa enquanto há vida e a alma espírita para o princípio de nossa individualidade após a morte. Como se vê, tudo isso é uma questão de palavras, mas uma questão muito importante para entender. De acordo com isso, a alma vital seria comum a todos os seres orgânicos: plantas, animais e homens; a alma intelectual seria própria dos animais e dos homens; e a alma espírita, apenas do homem.
Acreditamos dever insistir nessas explicações, porque a Doutrina Espírita baseia-se naturalmente na existência em nós de um ser independente da matéria e que sobrevive à morte do corpo. Como a palavra alma deve aparecer freqüentemente no decorrer desta obra, é importante saber o exato sentido que lhe damos, a fim de evitar qualquer equívoco. Vamos, agora, ao ponto principal desta instrução preliminar.

1 - É extraordinária a clareza com que Allan Kardec se refere à alma como ponto de partida para a discussão em torno de assunto tão relevante. Poderia ter dito que a alma é a base; mas, não. Diz que é o fecho de abóbada, a cúpula. O cimo, o mais alto, o mais importante, sobre o qual se deve estruturar tudo (Nota do Editor).
2 - Fecho de abóbada: pedra angular e principal de uma abóbada ou arco, na qual se sustenta toda a estrutura e as cargas externas. Neste caso: a questão primordial, a mais importante (N. E.).
3 - Panteísmo: doutrina filosófica segundo a qual só Deus é real. Tudo o que existe é a manifestação de Deus, que por sua vez é a soma de tudo o que existe (N. E.).
4 - Autônoma: que se realiza sem a intervenção de agentes externos; independente, livre (N. E.).
5 - Proteu: aquele que muda constantemente de opinião ou de sistema (N. E.).

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Introdução


1

PALAVRAS NOVAS
Para designar coisas novas são necessárias palavras novas; as
sim exige a clareza de uma língua, para evitar a confusão que ocorre quan-
do uma palavra tem múltiplo sentido. As palavras espiritual, espiritualista,
espiritualismo têm um significado bem definido, e acrescentar-lhes uma
nova significação para aplicá-las à Doutrina dos Espíritos seria multipli-
car os casos já tão numerosos de palavras com duplo sentido. De fato, o
espiritualismo é o oposto do materialismo, e qualquer um que acredite
ter em si algo além da matéria é espiritualista, embora isso não queira
dizer que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações
com o mundo material. Em vez das palavras espiritual, espiritualismo,
utilizamos, para designar a crença nos Espíritos, as palavras espírita e
Espiritismo, que lembram a origem e têm em si a raiz e que, por isso
mesmo, têm a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, reservando à
palavra espiritualismo sua significação própria. Diremos que a Doutrina
Espírita ou o Espiritismo tem por princípio a relação do mundo material
com os Espíritos ou seres do mundo espiritual. Os adeptos do Espiritis-
mo serão os espíritas ou, se quiserem, os espiritistas.
Como especialidade, o Livro dos Espíritos contém a Doutrina
Espírita; como generalidade, liga-se ao espiritualismo num dos seus as-
pectos. Esta é a razão por que traz, no início de seu título, as palavras:
“filosofia espiritualista”.