A Doutrina Espírita, como toda idéia nova, tem seus adeptos e
seus opositores. Vamos tentar responder a algumas das objeções,
examinando o valor dos motivos em que se apóiam, sem termos, en-
tretanto, a pretensão de convencer a todos, porque há pessoas que
acreditam que a luz tenha sido feita exclusivamente para elas. Dirigi-
mo-nos às pessoas de boa-fé, sem idéias preconcebidas ou obstina-
das e sinceramente desejosas de se instruir, e demonstraremos que a
maior parte das objeções à Doutrina provém de uma observação in-
completa dos fatos e de um julgamento feito com muita leviandade e
precipitação.
Lembremos primeiramente e em poucas palavras a série progres-
siva dos fenômenos que deram origem à Doutrina Espírita.
O primeiro fato observado foi o de que diversos objetos se movi-
mentavam; de maneira geral, chamaram-no de mesas girantes ou dança
das mesas. Esse fenômeno, observado primeiramente nos Estados
Unidos, ou melhor, que se repetiu e foi anunciado naquele país, por-
que a história prova que remonta à mais alta Antiguidade, se produziu
acompanhado de circunstâncias estranhas, como barulhos anormais,
pancadas sem causa aparente ou conhecida. Dos Estados Unidos se
propagou rapidamente pela Europa e em seguida por todo o mundo.
A princípio houve muita incredulidade, mas a multiplicidade das expe-
riências não mais permitiu duvidar da realidade.
Se o fenômeno tivesse ficado restrito ao movimento dos objetos
materiais, poderia ser explicado por uma causa puramente física. Esta-
mos longe de conhecer todos os agentes ocultos da natureza e todas as
propriedades daqueles que conhecemos; a eletricidade, aliás, multi-
plica a cada dia ao infinito os recursos que ela proporciona ao homem
e parece destinada (6) a iluminar a ciência com uma nova luz. Não haveria,
portanto, nada de impossível se a eletricidade, modificada por algum
fator ou qualquer outro agente desconhecido, fosse a causa desse
movimento. A reunião de muitas pessoas, aumentando o poder da
ação, parecia apoiar essa teoria, porque se podia considerar todo o
conjunto como uma pilha múltipla cujo potencial estava em razão do
número de elementos.
O movimento circular não apresentaria nada de extraordinário,
está na natureza, todos os astros se movem em círculos; poderíamos
ter um pequeno reflexo do movimento geral do universo, ou melhor,
uma causa até então desconhecida poderia produzir acidentalmente,
com pequenos objetos e em determinadas circunstâncias, uma cor-
rente parecida à que faz girar os mundos.
Ocorre que o movimento nem sempre era circular; muitas vezes
era brusco, desordenado; outras vezes o objeto era violentamente
sacudido, derrubado, levado numa direção qualquer e, contrariamente a
todas as leis da estática(7), levantado do chão e mantido no espaço.
Ainda não havia nada nesses fatos que não pudesse ser explicado
pelo poder de um agente físico invisível. Não vemos a eletricidade
derrubar edifícios, destruir árvores, lançar ao longe os mais pesados
corpos, atraí-los ou repeli-los?
Os ruídos anormais, as pancadas, supondo-se que não fossem um
dos efeitos normais da dilatação da madeira ou de qualquer outra causa
acidental, poderiam muito bem ser produzidos pelo acúmulo de um fluido
oculto: a eletricidade não produz os ruídos mais violentos (8)?
Até aí, como se vê, tudo podia ocorrer no domínio dos fatos pura-
mente físicos e fisiológicos. Sem sair desse círculo de idéias, havia
matéria para estudos sérios e dignos de fixar a atenção dos sábios.
Por que isso não aconteceu? É lamentável dizer, mas isso se prende
a causas que provam, entre mil fatos semelhantes, a leviandade do
espírito humano. Por se tratar de um objeto comum, no caso a mesa
que serviu de base às primeiras experiências, provocou a estranheza
e a indiferença dos sábios. Que influência, muitas vezes, não tem uma
palavra sobre as coisas mais sérias? Sem considerar que o movimen-
to poderia ser dado a um outro objeto qualquer, a idéia das mesas
prevaleceu, sem dúvida, porque esse era o objeto mais cômodo e ao
redor de uma mesa as pessoas se sentam com mais naturalidade do
que ao redor de qualquer outro móvel. Portanto, os homens de inteli-
gência superior são, algumas vezes, tão pretensiosos que não seria
nada impossível considerar que inteligências de elite tenham acredi-
tado que se rebaixariam caso se ocupassem daquilo que foi conven-
cionado chamar a dança das mesas. É mesmo provável que se o fenô-
meno observado por Galvani (9) o tivesse sido por homens comuns e
ficasse conhecido por um nome simples, ainda estaria rebaixado ao mes-
mo plano da varinha mágica. Qual é, de fato, o sábio que não teria
julgado uma indignidade se ocupar da dança das rãs (10)?
Entretanto, alguns sábios, bastante modestos por admitir que a
natureza poderia muito bem não lhes ter dito sua última palavra, qui-
seram ver, para tranqüilizar as suas consciências. Mas aconteceu que
o fenômeno nem sempre correspondeu à expectativa que tinham, e
como o fato não se produziu conforme a sua vontade e segundo seu
modo de experimentação, concluíram pela negativa. Apesar do que
decretaram, as mesas continuaram a girar, e podemos dizer como
Galileu: “Todavia elas se movem! ” Diremos mais: “É que os fatos se
multiplicaram de tal modo que hoje têm direito à cidadania e que não se
trata senão de achar-lhes uma explicação racional”.
Pode-se deduzir algo contra a realidade de um fenômeno pelo fato
de ele não se produzir de um modo sempre idêntico, atendendo à vonta-
de e às exigências do observador? Acaso não estão os fenômenos da
eletricidade e da química também subordinados a certas condições?
Deve-se negá-los porque não se produzem fora dessas condições? Por-
tanto, não há nada de surpreendente em que o fenômeno do movimento
dos objetos pelo fluido humano também tenha suas condições para se
realizar e deixe de se produzir quando o observador, colocando-se em
seu próprio ponto de vista, pretende fazer com que ele se realize confor-
me o seu capricho ou submetê-lo às leis dos fenômenos conhecidos,
sem considerar que para os fatos novos pode e deve haver novas leis?
Portanto, para conhecer essas leis é preciso estudar as circunstâncias
em que os fatos se produzem, e esse estudo só pode ser fruto de uma
observação perseverante, atenta e às vezes muito longa.
Mas algumas pessoas alegam que muitas vezes há fraudes evi-
dentes. Em primeiro lugar, devemos perguntar se estão bem certas disso e
se não tomaram por fraudes os efeitos que não conseguiram entender,
como o camponês que confundiu um sábio professor de física realizando
experiências como um mágico habilidoso. Mas, mesmo supondo que a
fraude pudesse acontecer algumas vezes, seria razão para negar o
fato? Deve-se negar a física porque há ilusionistas e mágicos que dão
a si mesmo o título de físicos? Aliás, é preciso levar em conta o caráter
das pessoas e o interesse que podiam ter em enganar. Então seria
um gracejo? Admite-se que uma pessoa possa se divertir por um ins-
tante, mas uma brincadeira indefinidamente prolongada seria tão can-
sativa para o mistificador (11) quanto para o mistificado. De resto, numa
mistificação que se propaga de um lado a outro do mundo e entre
pessoas mais sérias, mais veneráveis e mais esclarecidas, haveria
algo tão extraordinário quanto o próprio fenômeno.
6 - Kardec escreveu “parece destinada” porque referia-se aos primeiros inventos relacionados à eletri-
cidade, como a lâmpada, que estava, na época, em pesquisas e ainda era desconhecida (N. E.).
7 - Estática: ciência que estuda o equilíbrio dos corpos sob a ação das forças (N. E.).
8 - Os trechos “não vemos a eletricidade derrubar edifícios...” e “a eletricidade não produz os ruídos mais
violentos” referem-se às descargas elétricas provocadas pelos relâmpagos, trovões e raios (N. E.).
9 - Luigi Galvani: médico e físico italiano (N. E.).
10 - Dança das rãs: Galvani notou que as rãs dissecadas, expostas em pedaços sobre uma
superfície de ferro, davam pulos. Dessa observação a ciência caminhou para o conhecimento
do fluido nervoso e mais tarde da pilha elétrica (N. E.).
11 - Mistificador: enganador; que abusa da credulidade; burlador (N. E.).